O dia 20 de julho é dedicado a Zumbi, morto em 1695 e o mais famoso herói do Quilombo dos Palmares. O quilombo, situado na região hoje pertencente ao município de União dos Palmares, Alagoas, resistiu por quase um século e se desfez em 1710. Dessa época até a abolição da escravatura ainda se passaram quase dois séculos, pois o Brasil foi um dos últimos países a libertar os cativos.
Pelo menos é esta a informação básica apresentada e repetida per tempora nos livros escolares da história do Brasil. A bem da verdade, os acontecimentos, durante aquele longo e sinistro período em que homens escravizaram sumariamente seus semelhantes, se desenrolaram da forma mais brutal e impiedosa que ainda hoje se possa calcular.
Em toda a história humana, é possível que a escravidão responda pelo maior genocídio praticado durante centenas de anos contra homens e mulheres, acima de tudo eles, os negros traficados da África, em sua maior parte para as colônias imperiais nas Américas. Tratados como bichos – para usar uma comparação grosseira, uma vez que os bichos também devem ser tratados com dignidade – os escravos eram submetidos aos mais cruéis tratos, suplícios e torturas. Sabemos ainda hoje que eram trancafiados em senzalas, marcados a ferro em brasa e trabalhavam brutalmente sem ganho.
Deixando de lado os livros escolares de história, para buscar a verdade nua e crua em torno da escravatura no Brasil, vamos encontrar no escritor Laurentino Gomes, por exemplo, narrativas que nos deixam, a cada linha, cada vez mais aterrorizados. Em uma aprofundada trilogia, Laurentino dedica no livro intitulado 1808 um capítulo inteiro ao tema.
Os dados comovem e assustam. “Entre os séculos dezesseis e dezenove, cerca de 10 milhões de escravos africanos foram vendidos para as Américas. O Brasil, maior importador do continente, recebeu quase 40% desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões de cativos”.
E segue: “Na África, cerca de 40% dos negros escravizados morriam no percurso entre as zonas de captura e o litoral. Outros 15% morreriam na travessia do Atlântico, devido às péssimas condições sanitárias nos porões dos navios negreiros. Da costa atlântica, uma viagem até o Brasil durava entre 33 e 43 dias. De cada cem negros capturados na África, só 45 chegavam ao destino final. Significa que, de dez milhões de escravos vendidos nas Américas, quase outro tanto teria morrido no percurso, num dos maiores genocídios da história da humanidade”.
Ainda segundo Laurentino, no Brasil “os museus coloniais estão repletos de instrumentos pavorosos de punição e suplício dos escravos. A punição mais comum era o açoite, nas costas ou nas nádegas, quando fugia, cometia algum crime ou alguma falta grave no trabalho”. Além disso, o escravo era amarrado no pelourinho, exposto em praça pública e, conforme a infração cometida, levava de cem a trezentas chibatadas. Pior que os açoites era, talvez, o tratamento aplicado depois. Em carne viva, as costas dos negros punidos eram lavadas com sal e pimenta, para evitar infecção. Pois a morte do escravo era prejuízo para o dono.
Tudo isso aconteceu na história contemporânea, há pouco mais de um século e durante os dois mil anos da cristandade. A Igreja Católica, por sinal, calou-se friamente durante todo esse período a respeito da escravidão. Toda a fraseologia e palavreado dos clérigos, pastores, guiadores espirituais dos povos sequer tocou no assunto. Mesmo porque os religiosos também eram senhores de escravos.
Escravizar o semelhante foi, por centenas de anos, ou continua sendo, a coisa mais natural do mundo para o homem dito civilizado, verdadeiro algoz de milhões de Zumbis por aí afora.


1 comentário
Mais um excelente texto, caro cronista. Além de informações, dados e sugestões literárias, não esqueceu da, sempre oportuna, crítica social.
Parabéns!